É necessário retornar para o tempo, anterior ao boom da internet no Brasil, em que as locadoras de filmes representavam o lugar onde todos deveríamos buscar entretenimento e acesso aos prodígios da sétima arte, estes, após uma longa estada nos cinemas de todo o mundo, jaziam em prateleiras inofensivas e solícitas.
Todos temos histórias para contar sobre as incontáveis vezes em que precisamos despender tempo e dinheiro para manter o hábito de assistir aos filmes na comodidade do lar. O hábito de ir ao cinema continuava a ser o único modo de primeiro ter com as novidades cinematográficas, depois, para os que podiam, era a locadora o repositório de filmes em fitas VHS e depois em DVD. Mas havia o deslocamento e era preciso estrategicamente locar os filmes às pressas, pois a oferta era menor do que a procura e a cada locação, o produto sofria as consequências do manuseio. Era comum levar para casa dois ou três filmes e em alguns deles apresentar problemas de funcionamento, as vezes a fita engasgava, depois os DVDs arranhavam e lá íamos nós devolver os filmes e arcar com grandes somas em dinheiro para bancar a devolução tardia ou para custear as ocasionais avarias. Toda uma indústria pareceria nutrir-se do fato de que nada havia que pudesse ser feio e o jeito era remendar a experiência do usuário com locadoras como a Blockbuster por exemplo que oferecia um serviço mais inteligente por alugar além de filmes, games e fazer assinaturas para fidelizar os clientes.
Coexistindo com as locadoras de filmes, é justo relembrar que sempre existiu a TV por assinatura, porém era um tipo de produto que contemplava filmes no meio de uma diversidade de programas, desta forma o assinante se via melhorando a experiência de assistir TV, mas ainda assim alugando filmes e passando por tudo o que acima descrevemos e na época as programadoras de filmes não dispunham de plataformas capazes de transmitir os filmes da forma como hoje podemos ter acesso. Agindo à margem dos tediosos aluguéis e a TV aberta divulgando a lista dos filmes que seriam exibidos ao longo de 12 meses, havia o mercadão clandestino de filmes, sujeitando a gente honesta deste país a corromper a alma com a compra dos DVDs piratas. Único jeito. A indústria assim determinava que além de crime, este produto ocasionava problemas estruturais nos aparelhos domésticos. Então era de medo que vivíamos e quase sempre levávamos uma vida oblíqua. Era urgente que algo acontecesse e que pudesse nos libertar dessa experiência pouco harmônica, fazer o novo reluzir e enfrentar o status quo. Netflix surgiu, e com a ajuda da deusa Minerva, fez Tróia arder sob as chamas gregas, libertando-nos para sempre e conseguiu tornar a fraqueza das locadoras, a sua maior fortaleza. Exceto pelos cinéfilos, as pessoas em geral não queriam possuir os filmes e sim, acessar, assistir uma, duas, três, vezes e só. Mas ao passo que gostariam de ter a experiência de acessar sem possuir, também não gostariam de ter de devolver.
(Volatility, Uncertainty, Complexity and Ambiguity) Volátil, Incerta, Complexa e Ambígua para os tempos que vivemos dá conta de explicar. No começo, se contratava a plataforma e o primeiro mês era grátis; nos demais meses o valor para manutenção do serviço, era, em comparação aos benefícios, irrisório; compatível com uma conexão de internet pífia, uma playlist com os filmes que amamos estava disponível a hora que quiséssemos. Netflix reforçou as máximas do “sob demanda” e em “qualquer lugar”.
Através de tablets, celulares, TV, notebooks, passamos a ficar há poucos cliques de distância dos nossos filmes favoritos e sem comerciais e se o usuário quiser cancelar ok, não tinha punição fora ficar
sem o serviço em casa, não há até hoje mal que supere este. A plataforma evoluía com o apetite do usuário e se no começo disponibilizava um catálogo de filmes mais antigos, com o passar do tempo começou a utilizar a ciência de dados (IMDb - Internet Movie Database), ah e essa base pertence atualmente à Amazon, para mapear as escolhas do assinante. Um BIG DATA sem precedentes fluía dando conta das preferências e recusas do usuário e como resultado, uma nova era estava surgindo, filmes mais atuais eram disponibilizados e os estúdios viam a plataforma como uma distribuidora poderosa para as superproduções do cinema. Com um pós-venda aclamado no planeta inteiro como o mais fluido e bem estruturado dentre as gigantes e a quantidade de assinantes satisfeitos com o serviço só aumentando, o próximo passo era acolher os filmes de todos os cantos do globo, sim, por anos e anos, Hollywood havia exercido incontestável poder sobre o mercado cinematográfico, mas agora, era diferente, o que comandaria o show seria o gosto do usuário, e como dito antes, observado e mapeado de perto.
E o que você faz quando consegue que o seu império conquiste o mundo? Você o recria para que tudo seja como a sua corte deseja. Ora, se a Netflix ostentava o primeiro lugar na preferência dos usuários, o passo mais natural seria produzir seus próprios filmes e séries ou só comprar direitos de reproduzir somente o que as pessoas querem de fato assistir para atender os seus usuários com base nas preferências mapeadas.
E foi o que aconteceu e desta vez, não restaria qualquer sombra de dúvidas do quanto a plataforma triunfaria, criando ou veiculando os conteúdos e de preferência com chamadas geniais, artísticas e energizantes, confere aí o que estamos falando:
Agora compartilhamos alguns dos top 15 das melhores séries e antes que os fãs de Elite, Império Romano, Freud, O mundo sombrio de Sabrina, Anne With E e tantas outras séries fantásticas se exaltem, buscamos uma fonte que recorreu ao IMDb para divulgar a presente lista e sabemos que estes dados em breve estarão completamente superados, mas quem se importa? Estamos dizendo que em 2020 que de acordo com uma base pertencente por enquanto à Amazon, é possível mapear as preferências das pessoas em relação à uma plataforma global de filmes e sabemos que filmes são cenários prontos que muitas vezes servem para tangibilizar aquilo que ainda não existe, recriar mundos perdidos ou simplesmente botar fogo no parquinho.
BREAKING BAD – 9.4 no IMDb
RICKY AND MORTY – 9.2 no IMDb
AVATAR: A LENDA DE AANG – 9,2 no IMDb
E o Netflix não quis parar desconstruindo somente as locadoras. Foi lá e desconstruiu o império do Cinema. Antes considerada inimiga dos cinemas e dos tradicionalistas da forma, a Netflix se consolidou em 2019 e 2020 como protagonista na distribuição de filmes considerados “de prestígio”. A confirmação veio com o anúncio, das indicações do Oscar 2020, em que o serviço de streaming abocanhou 24 indicações, maior marca do ano. A Disney ficou logo atrás com 23, seguida da Sony, com 20 indicações. O salto da Netflix deve-se muito a como a empresa conseguiu, até que enfim, se infiltrar nas principais categorias do evento. Em 2019, Roma colocou a empresa no mapa com 10 indicações, mas foi exceção: além do filme de Alfonso Cuarón, foram apenas 5 indicações. E por falar em sucesso inesperado em La Casa de Papel ocorreu um fenômeno, um verdadeiro cataclismo que faria o mundo se render aos ladrões espanhóis vestindo máscaras de Dali.
Vencedores de prêmios como IRIS, MiM Series, FesTval, 46th International Emmy Awards e Fênix, de alguma forma a série transcendeu o campo da ficção e se tornou graças aos símbolos, signos e múltiplos significados presentes na obra, um manifesto em favor dos destemidos, páreas e principalmente os politicamente incorretos.
Um bom exemplo da exatidão das escolhas das bandeiras por trás da obra foi a aclamação da música Bella Ciao e aqui compartilhamos a primeira estrofe: “Una mattina mi son' svegliato O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao Una mattina mi son' svegliato E ho trovato l'invasor” “Uma manhã, eu acordei Querida, adeus! Querida, adeus! Querida, adeus, adeus, adeus! Uma manhã, eu acordei E encontrei um invasor” Estes versos fazem parte de uma música popular da década de 40 e era um coro em repúdio ao fascismo na Itália durante a Segunda Guerra Mundial; mais tarde na década de 60 ainda na Itália a canção se revestiu de novo significado para entoar protestos estudantis; nos anos 2000 foi a vez de Istambul e Hong Kong de se servirem dos mesmos versos. O que há de comum muito embora em décadas e lugares diferentes, é a representação que esta música tem em favor da resistência e da liberdade. O grande apelo de La Casa de Papel junto aos jovens se deu pelo fato de que os personagens da série conseguiram se comunicar de um jeito muito especial através de um professor nada diferente dos nerds que subestimamos ao longo de nossas vidas e que na série, remotamente coordenava as ações do grupo dentro da casa da moeda espanhola. Longe de aclamarmos o crime em detrimento da virtude, não é, definitivamente esse o nosso objetivo. Mas é que o professor involuntariamente ajudou a criar um comparativo útil para nós e que logo mais estressaremos com a devida atenção. Voltando à análise da série, os demais personagens apresentam dúvidas e inseguranças demasiado humanas, não podem, de acordo com o roteiro da série, ser classificados como bandidos ou mocinhos e a cada etapa do assalto, o expectador toma conhecimento de suas vidas, os medos e os sonhos que não diferem muito da grande parte das pessoas, principalmente os jovens.
As instituições são desafiadas ao ponto de perderem o controle do que ocorre no assalto, porque o roubo é um meio que os assaltantes encontraram de fazer com que as pessoas reflitam sobre o que é possível fazer quando se está em posição de ditar as regras. Os diálogos não são compostos pelos velhos xingamentos e clichês, as perdas são calculadas e a narrativa que costura os capítulos não permite que o expectador desgrude os olhos da tela. Quando a arte conversa com aspectos da vida real, é interessante perceber cada movimento.
Este livro está sendo escrito, contemporâneo a maior crise de saúde mundial das últimas décadas e por longos meses, as pessoas permanecem reclusas em suas casas. Parques, igrejas, estádios de futebol, bancos, lojas, fábricas, firmas de advocacia e outros estabelecimentos exceto supermercados e farmácias estão fechados e não é possível interagir, salvo através de plataformas digitais.
Empresas estão mantendo o contingente de colaboradores que pode, em home office; as escolas se veem obrigadas à verter a abordagem instrucional presencial para EAD e para além do que todos os evolucionistas e futuristas poderiam prever, países como o Brasil tiveram de se adaptar ao remoto em poucos meses, contrariando qualquer Lei de Moore. A humanidade “atravessou o Rio Rubicão” e não há volta para um ato assim. E da mesma forma que Netflix passou a ser regra e o Cinema exceção, nas empresas o home office era exceção, agora passou a ser regra; se antes, as escolas e universidades mantinham um percentual mínimo de aulas EAD, agora o EAD passou a ser regra, seja através do aumento do percentual de disciplinas online que fora imposta pelo Estado ou pela pandemia que veio para empiricamente impor a nova abordagem.
As instituições são desafiadas ao ponto de perderem o controle do que ocorre no assalto, porque o roubo é um meio que os assaltantes encontraram de fazer com que as pessoas reflitam sobre o que é possível fazer quando se está em posição de ditar as regras. Os diálogos não são compostos pelos velhos xingamentos e clichês, as perdas são calculadas e a narrativa que costura os capítulos não permite que o expectador desgrude os olhos da tela. Quando a arte conversa com aspectos da vida real, é interessante perceber cada movimento.
Esta pandemia, tentando manter um espaçamento histórico estratégico, de alguma forma passará. Porém os efeitos nefastos e as inevitáveis transformações provenientes dela, não. Imagine que se em tempos de crise as empresas e instituições de ensino estão se organizando para dar conta de continuar funcionando e quem sabe planejando aumentar a efetividade de suas ações, após a pandemia, não seria difícil considerar que este seja o começo de algo interessante. Ora, se tem uma coisa que não muda com o passar do tempo, é a avidez pelos lucros. Quanto custa ao Estado manter os prédios das escolas? Quanto custa aos empresários e investidores manter o CNPJ sob um teto? E se houvesse um jeito de manter as pessoas aprendendo e os trabalhadores produzindo de um jeito diferente, mas ainda assim eficiente e que despendesse um investimento menor? Veja bem, não estamos concordando ou discordando, entenda, não nos interessa particularmente como estas estruturas se configuram para além da hermenêutica. Entretanto, se antes a experiência de escolher um filme parecia circundar o fato de que era necessário ao usuário se deslocar até uma locadora, por que que aprender e trabalhar deveria ser diferente?
Então é o fim da forma atual de explicitação do conhecimento e a execução do trabalho que conhecemos? É difícil dizer e não trabalharemos com previsões aqui. Mas uma coisa é certa, é preciso rever práticas, é preciso uma nova lente, mais poderosa, mais otimista, menos maniqueísta e junto desta nova forma de pensar, vem um novo jeito de agir, pois só assim poderemos lançar um olhar crítico sobre tudo, sobre a vida e sobre a nobre arte de compartilhar saberes. A pergunta que precisamos nos fazer como professores, facilitadores, mediadores, multiplicadores ou instrutores, não importa o título pois esta questão é direcionada a todos nós, a questão que vale um milhão e fez com que o hábito de alugar filmes se transformasse para sempre: Qual é o tipo de experiências que estamos promovendo em sala de aula?
Elas estão valendo o deslocamento e o tempo das pessoas ou uma máquina poderia fazer de forma mais eficiente? Enquanto você pensa na resposta, aproveitamos para compartilhar uma história breve que pode ajudar você neste exercício de autoanálise. Existe um jogo oriental chamado “GO”, um dos bons, um dos mais complexos que existem, há uma lenda de que um homem tinha acabado de se tornar pai e saíra para o campo para reunir os animais que criava, caminhando ele avistou do alto de um monte uma partida de GO em curso, fascinado ele se sentou e assistiu à partida completa. Depois ele se levantou e voltou para casa e lá chegando, avistou um homem de barba administrando a casa dele como se fosse o dono, depois ele descobriu que era o seu filho que havia se tornado adulto. A partida de GO havia sido tão desafiadora, emocionante e longa que ele não tinha percebido o tempo passar.
Lendas como estas servem para ilustrar o fascínio do jogo e que os respectivos jogadores podem chegar à níveis bem elevados de proficiência e o cinema como sempre pode dar uma ajudinha. Compartilhamos uma partida recriada pelo filme “Uma mente brilhante” e nesta cena, o jovem matemático e Nobel de economia John Nash, perde uma partida para um colega de Princeton:
Um dia o Google decidiu que poderia reunir os maiores jogadores de GO do mundo para programar uma máquina capaz de vencer qualquer oponente. Organizaram um evento televisionado, uma espécie de duelo entre a máquina e o maior jogador de Go de todos os tempos: O jogador perdeu as partidas enquanto a máquina venceu por executar jogadas incríveis. Mas em algum momento entre a derrota do jogador e o triunfo completo do software, alguém muito lúcido fez a única coisa que importa para nós.
Dentre outras coisas este alguém disse que a máquina conseguiu derrotar um ser humano, mas a máquina foi programada por outros seres humanos. Então o ser humano venceu de qualquer maneira. Há limites para o que as máquinas podem fazer e este limite está ancorado na capacidade humana de questionar, emocionar e transcender. A pergunta que fizemos sobre o que estamos fazendo em sala que vale o deslocamento e o tempo das pessoas, esperamos, deve causar um incômodo profundo, só compatível ao incômodo do aluno em passar horas e horas sentado em fileiras, em silêncio aguardando que alguém ministre uma aula que se resume em repetir conceitos numa lousa.
Faça o seguinte exercício: joga no Google a pergunta: “O que foi o triunvirato romano?”. Uma das respostas virá da wikipedia.org: “O Primeiro Triunvirato foi uma aliança política informal estabelecida em 60 a.C., na República Romana, entre Júlio César, Pompeu, o Grande e Marco Licínio Crasso, que haveria de se prolongar até 53 a.C..” Agora no YouTube: “O que foi o triunvirato?” e encontre a resposta:
Veja que neste exemplo, o conceito e algumas curiosidades sobre o tema estão disponíveis para o aluno acessar a hora que quiser, salvo situações de completa desconexão de internet. Ora, se pode o aluno acessar conceitos e demais aspectos do tema por conta própria, o que sobra então para nós, mediadores de aprendizagem? Sanar dúvidas? Não seríamos tão precipitados, joga no seu Spotify: “Império Romano” e ouça o episódio #118 do pessoal do SCICAST.
Gosta de maior interação para tirar dúvidas? Conheça a Alexa:
E se não estaremos lá para transmitir conceitos ou sanar dúvidas, qual será então o nosso papel, local de fala ou o nosso pedacinho neste mundo de possibilidades? Primeiramente humildemente compreendendo que nós, mediadores, instrutores, professores não estamos no centro da aprendizagem, o aluno está. Em segundo lugar, o digital vai além dos artefatos, da parafernália tais como realidade virtual, aumentada, mista e holografia.
E por último, o maior ativo do mundo é o tempo. Esqueçamos tudo o que sabemos sobre a percepção de valor das coisas. O tempo é rei. Em contrapartida, é prudente ponderar que tanto as aulas quanto os treinamentos precisam seguir diretrizes geralmente impostas por esferas outras. Porém o “como” estes conteúdos serão abordados, este sim podem ser objeto de nossa reflexão. E quanto ao professor em La casa de Papel, o maior dom dele não era o de dar as ordens, mas o de inspirar, reunir pessoas com saberes diferentes e compartilhar saberes válidos para a vida. O que estamos fazendo com o tempo dos nossos alunos? Estamos preparando as pessoas para a vida ou reproduzindo um monte de conceitos que não servirão para nada além de um vestibular ou emprego? E se a vida fosse muito mais? Steve Jobs...
Esperamos que este livro plante a dúvida, pois como dizia Descartes, é preciso duvidar para pensar, e é preciso pensar para existir.